10/04/2024

Novo modelo de demonstração de resultados de empresas esbarra em lei brasileira

Por: Victor Meneses
Fonte: Valor Econômico
Um novo modelo para as demonstrações de resultados do exercício (DRE) de
empresas, a peça contábil mais lida por investidores e analistas, que traz receitas
e lucros, foi publicado nesta terça-feira (9) e entrará agora em processo de
adoção em cerca de 158 países, incluindo o Brasil. Mas por aqui, a novidade
ainda precisa encarar uma antiga barreira: a Lei das Sociedades por Ações.
A norma IFRS 18, elaborada pelo Conselho de Normas Internacionais de
Contabilidade (Iasb, em inglês), surgiu em resposta aos apelos dos investidores
que sentiam falta de uma maior transparência e padronização nos
resultados, a fim de facilitar a comparação dos números de diferentes
empresas.
No mundo todo, o novo padrão contábil passará a ser adotado a partir de 1° de
janeiro de 2027 — com possibilidade de ser implementado antecipadamente
pelas companhias que desejarem. No Brasil, contudo, existe um problema:
apesar da recepção positiva no mercado local, a estrutura legal do país cria
possíveis conflitos judiciais com a norma.
Acontece que a Lei das S.A., datada de 1976, determina como as empresas
devem apresentar seus resultados e alguns subtotais de lucro, contrastando com
as especificações desta e de outras normas contábeis.
“A IFRS 18 propõe que uma entidade faça uma análise das despesas que
compõem o lucro ou prejuízo operacional com base na natureza ou na função
das despesas, usando qualquer método que forneça as informações mais úteis,
sem mistura de natureza e função. Entretanto, a Lei das S.A. exige a
apresentação de alguns itens por função”, diz Alexsandro Tavares, presidente
da comissão de auditoria e normas contábeis da Associação Brasileira das
Companhias Abertas (Abrasca).
Quando menciona “função”, ele se refere à segregação de gastos entre “custo”
e “despesa”, que não é obrigatória conforme a IFRS 18.
Esse entrave legal, no entanto, não é uma surpresa, uma vez que foi tema de
intensa discussão no Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), o colegiado
responsável pela recepção das normas internacionais no Brasil formado por
órgãos da profissão contábil e representantes do mercado de capitais, com a
participação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
O fato é que, quase toda vez que surge uma nova norma contábil atualizada, há
um conflito com a legislação brasileira, comenta Eliseu Martins, professor
emérito da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária
(FEA), da Universidade de São Paulo (USP). A Lei das S.A. chegou a ser
reformada em 2007, pela Lei 11.638, mas essa, de acordo com o professor, já
nasceu desatualizada, devido ao período de quase oito anos para a sua
aprovação.
“Fizeram alterações, mas não eliminaram os conflitos. Não faz sentido colocar
norma contábil na lei, já que as normas internacionais vão evoluindo, cada dia
incluindo um instrumento novo, uma forma diferente de fazer e, para mudar
uma lei, é muito mais trabalhoso”, diz.
O contabilista explica que, na prática, não há efeitos diretos do embate entre a
Lei das S.A. e as normas contábeis externas, considerando que as alterações que
a lei sofreu estabelecem que a CVM siga os padrões internacionais, e isso vale
para companhias abertas e sociedades de grande porte. Já para o restante das
empresas é o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) que dita as normas,
que, por sua vez, acompanha a CVM.
Judicialização
Porém, Eliseu teme que a questão possa ser levantada por alguma parte
interessada e então se torne um problema. Como exemplo, o acionista de uma
companhia pode entrar com um processo judicial questionando a empresa
por não seguir o que consta na Lei das S.A. que lhe seria benéfica em algum
ponto, levando a uma judicialização longa, complicada e evitável.
Apesar disso, o professor diz não ter conhecimento de algum caso parecido
com o descrito, mas que é melhor tirar da lei definições sobre normas contábeis
para evitar dores de cabeça.
“Existe um grupo que está estudando uma proposta de tirar definições sobre
normas contábeis da Lei das S.A. O CPC está agora com isso na pauta e vai
aproveitar o momento para acelerar o processo”, diz.
O que deve mudar
Mesmo com a pedra no caminho, o IFRS 18 é visto com bons olhos em razão
das mudanças que promove. Dentre elas, destaca-se a criação de novos
subtotais de lucro definidos para fornecer uma melhor estrutura de
apresentação e divulgação das demonstrações de resultados, que passarão
a ser divididas nas categorias operacional, investimento e financiamento.
O conselho de normas internacionais realizou uma pesquisa durante a
elaboração do projeto e descobriu que o lucro operacional é um dos dados mais
usados nas demonstrações, no entanto, cada companhia tem uma definição
diferente sobre este subtotal, o que impede uma comparação plena entre os
lucros operacionais de companhias distintas. Agora, isso mudará com a nova
norma.
Outra grande alteração incorporada na IFRS 18 está associada ao lucro antes de
juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda, na sigla em inglês) que não
segue um padrão determinado e, hoje, é divulgado por meio de releases,
comunicados, relatórios ou comentários da administração com base em
critérios individuais de cada empresa.
“Além dos subtotais, a proposta também foi trazer as medidas de desempenho
‘alternativas’ para dentro das demonstrações financeiras”, comenta Tadeu
Cendon, membro do Iasb. As companhias poderão continuar utilizando
critérios ajustados, mas terão que fazer uma reconciliação do valor ajustado para
a medida contábil mais próxima numa nota explicativa. Como isso, esses
números ajustados passam a ter a checagem da auditoria externa.
“Pode-se dizer que o principal objetivo do projeto foi atingido, que é a
melhoria na demonstração e aumento da comparabilidade dos
resultados”, diz Rogério Mota, diretor técnico do Instituto de Auditoria
Independente do Brasil (Ibracon).
O processo de adoção da norma no país envolve a recepção, tradução e emissão
pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis, submissão a uma audiência
pública conjunta e aprovação do CFC e da CVM. Outros órgãos reguladores
como a Superintendência de Seguros Privados (Susep) e o Banco Central
também costumam adotar os documentos do CPC.
Após aprovação no plenário, o pronunciamento é convertido em Norma
Brasileira de Contabilidade, explica a vice-presidente técnica do CFC, Ana
Tércia Lopes Rodrigues.
A CVM não comentou, mas afirmou em nota que a norma está na agenda
regulatória contábil e de auditoria de 2024 e será levada a uma consulta
pública.
Contando a partir da publicação, serão quase três anos para que as empresas se
preparem para adotar a norma, mas, ainda assim, pode não ser tempo suficiente
para que os investidores brasileiros possam se colocar a par da novidade, diz
Haroldo Levy Neto, diretor técnico da Associação dos Analistas e Profissionais
de Investimento do Mercado de Capitais do Brasil (Apimec).
“Boa parte dos investidores não acompanha ou se preocupa com atualizações
de normas, com exceção dos grandes e institucionais. Estamos fazendo um
esforço para aproximar os menores”, comenta.